Se pararmos para olhar o universo à distância, veremos que em seus primeiros momentos ele era bem simples, era um espaço cheio de matéria, algo sem caracteres ou características. Era o que na mitologia Hindu se chama de “Turiya” – palavra que descreve algo como “sem atributos”. Leva tempo para ocorrer uma transformação em reinos mais criativos. A pré-condição para a criatividade é o desequilíbrio, o que os matemáticos atualmente chamam de Caos. Através da vida do universo, à medida em que caíam as temperaturas, surgiam estruturas compostas cada vez mais complexas. A partir do estado de fecundidade criativa, manifestava-se mais criatividade. O universo é uma máquina de fazer arte, um motor para a produção de formas cada vez mais novas de se estar conectado, e da justaposição cada vez mais exótica de elementos díspares.
Cada artista é uma antena para o Outro Transcendental. Enquanto seguirmos com nossa própria história para dentro disso e criarmos confluências únicas de nossa singularidade e sua singularidade, nós criamos coletivamente uma flecha a partir da história, do tempo, talvez até a partir da matéria, a qual vai redimir a ideia de que os humanos são bons. Esta é a promessa da arte, e sua realização nunca esteve tão perto do momento presente.
Repertório Segoviano
O repertório praticamente restrito aos compositores do período clássico e da segunda metade do século XIX constituía-se, de certo modo, um fator limitante para o repertório do instrumento na medida em que o excluía de formações camerísticas ou sinfônicas, apesar da existência de alguns poucos concertos para violão e orquestra dos compositores italianos Ferdinando Carulli (1770– 1841) e Mauro Giuliani (1781– 1829). No cenário filarmônico, portanto, o violão era tido como um instrumento inapto para expressar discursos musicais mais arrojados e/ou em formações mais sonoras, fatores ligados também à sua baixa projeção sonora. É nesse contexto que Andrés Segovia atua para conferir maior credibilidade ao instrumento, dando continuidade ao trabalho de Francisco Tárrega e sua escola, inclusive transcrevendo obras para violão. Apesar de seus esforços na transcrição, ressaltamos que o principal eixo da atuação de Segovia foi o incentivo ao desenvolvimento e a performance de um novo repertório, pela associação a diversos compositores não violonistas.
O espanhol Andrés Segovia (1893-1987) é introduzido ao violão enquanto ainda criança e se dizia autodidata no decorrer de sua longa carreira. A importância na atuação e a influência do legado de Segovia vai muito além de seu trabalho com as transcrições. Como intérprete, evidenciou a capacidade sonora do violão e revolucionou o imaginário que se construía sobre o instrumento no público adepto da música de concerto do século XX. Sua atuação elevou a reputação do violão e estimulou a criação de um repertório próprio, mas sempre pautado por suas preferências estéticas que remontam à tradição romântica. Como resultado de suas constantes realizações devotadas ao instrumento no decorrer de seus 94 anos de idade, é considerado o violonista mais influente do século XX. Edelton Gloeden, professor de violão da USP, evidencia a significância de Segovia em sua dissertação de mestrado, intitulada O ressurgimento do violão no século XX: Miguel Llobet, Emilio Pujol e Andrés Segovia, ao mencionar a atuação do mestre espanhol como marco da ruptura na ordem de produção de repertório violonístico, com a “figura do intérprete compositor cedendo lugar ao compositor não violonista e o intérprete especialista”, (GLOEDEN, 1996, p.91).
A fama crescente do instrumento veiculada pelos esforços de Segovia atraiu a atenção de jovens compositores que gostariam de escrever para o violão. O problema é que, sem a tutela de Segóvia, poucos deles compreendiam o idiomatismo do instrumento o suficiente para que pudessem o fazer. Por consequência, uma parcela significativa do repertório moderno foi composto através de sua participação em colaborações com estes compositores, o que é chamado no meio violonístico de Repertório Segoviano. Em seu livro “História do Violão”, Norton Dudeque discorre a respeito destes compositores e as principais obras que integram esse repertório, de conhecimento fundamental à formação do violonista erudito, que sumarizo no decorrer deste post:
“O primeiro destes é Joaquin Turina (1882-1949), que dedicou sua pequena produção violonística inteiramente a Segovia. Sua obra para violão inicia-se com o Fandanguillo, de 1926, seguindo-se Rafaga, de 1930, a Sonata, de 1932, que é sua peça mais ambiciosa para o instrumento e a Hommage à Tárrega, de 1935, composta de dois movimentos, Garrotin e Soleares. Esta última se tornou a obra mais conhecida e executada de Turina.
Federico Moreno Tórroba (1891-1982) compôs um grande número de obras para violão, dedicadas na sua maioria a Segovia. A primeira obra importante de Tórroba para violão foi publicada em 1926, a Suite Castellana. Seguiram-se o Nocturno (1927) e a Burgalesa (1928). As seis peças que compõem a suíte intitulada Piezas Caracteristicas datam de 1931. Seus movimentos são os seguintes: Preambulo, Oliveras, Melodia, Los Mayos, Albada e Panorama.
A mais importante obra de Tórroba é sua Sonatina (1953), que também se tornou sua obra mais popular. Ainda podemos citar Madroños (1954), Aires de La Mancha (1966) e o concerto para violão e orquestra Homenaje a la Seguidilla. Além de sua grande produção violonística, Moreno Tórroba também é conhecido como autor de zarzuelas (operetas espanholas), entre as quais se destacam Luisa Fernanda e La Mesonera de Tordesillas.
Joaquin Rodrigo (1902) deu continuidade na criação de novas obras para violão. A sua obra mais famosa é o Concierto de Aranjuez (1939), dedicado a Regino Sanz de la Maza (1987-1981), e que teve sua estréia em 1940. Já a fantasia para un Gentilhombre (1955) é dedicada a Segovia. Nesse concerto, Rodrigo baseou-se em temas do guitarrista espanhol do século XVII, Gaspar Sanz. Também para Segovia, Rodrigo escreveu as Tres Piezas Españolas (1963), que se tornaram um dos maiores clássicos na literatura violonística do século XX. Ainda citamos, Por los Campos de España (1958), Trois Petites Pieces (1963) e Elogio de la Guitarra (1971), entre outras. Além das duas obras para violão e orquestra já mencionadas, Rodrigo escreveu o Concierto Andaluz (1967) para 4 violões e orquestra, o Concierto Madrigal (1968) para 2 violões e orquestra e o mais recente Concierto para una Fiesta, dedicado a Pepe Romero.
O Polonês Alexander Tansman (1897-1986) é o autor de importantes obras para o violão. A sua Cavatina (1951) obteve o 1º lugar no “Concorso Internazionale” da Accademia Chigiana di Siena realizado em 1951. É composta de quatro movimentos; Preludio, Sarabanda, Scherzino e Barcarola, sendo que um quinto movimento foi incluído por sugestão de Segovia, a Danza Pomposa. Ainda de Tansman destacam-se a Mazurca (1928), sua primeira obra para o instrumento, a Suite in Modo Polonico (1964), uma Hommage à Chopin (1972), as Variations sur un théme de Scriabin (1972) e um concertino para violão e orquestra de câmara, intitulado Musique de Cour (1971), obra em que, como na Fantasia de Rodrigo, o autor baseia-se em temas de um guitarrista do século XVII, neste caso, o francês Robert de Visée.
O italiano Mario Castelnuovo-Tedesco (1895-1968), foi um dos mais prolíficos compositores para violão. A sua produção inicia-se quando do seu encontro com Segovia, em 1932, em Veneza. Segovia sugere-lhe então que componha uma obra para violão; como resultado, aparecem as Variazioni attraverso i secoli op. 71 (1932), que inicia com uma chaconne como tema seguindo-se danças de várias épocas, sendo a última variação um “fox-trot”. Seguiram-se obras que homenageiam célebres compositores italianos, como a Sonata, Omaggio a Boccherini, op. 77 (1934) e o Capriccio Diabólico, Omaggio a Paganini, op. 85 (1935), obra que teve sua orquestração realizada em 1945.
O concerto in D op. 99 (1939) foi o resultado das freqüentes requisições de Segovia junto a Tedesco, para que este compusesse um concerto para violão e orquestra. O resultado foi excelente. O concerto apresenta um bom equilíbrio na orquestração, contrabalanceando bem, a sonoridade do violão e da orquestrra. Seguiram-se a Serenada op. 118 (1943) e o Second Concerto in C op. 160 (1953), ambas para violão e orquestra. O Guitar Quintet op. 143 para violão e quarteto de cordas, data de 1950, e tornou-se uma das obras com esta formação, mais importantes do repertório camerístico.
Outras obras importantes de Tedesco são a Tarantella op. 87 (1936), a suíte op. 133 (1947) Platero y Yo op. 190 (1960), 28 poemas de Juan Ramon Jiménez, para violão e narrador, os 24 Caprichos de Goya op. 195 (1961), obras que refletem musicalmente os desenhos de Francisco Goya. Ainda de Tedesco, temos importante música de câmara com violão, como é o caso da Sonatina for Flute and Guitar op. 205 (1965), uma Ária e Ecloghe for Guitar, Flute and English Horn op. 206. Quando do seu encontro, em 1961, com o duo de violões formado por Ida Presti (1924-1967) e Alexandre Lagoya (1929), Tedesco compôs várias obras para dois violões, entre estas a Sonatina Canonica op. 196 (1961), Les Guitares bien temperées op. 199 (1962), 24 prelúdios e fugas e o ótimo concerto for two Guitars and Orchestra op. 201 (1962).
Entre os compositores latino-americanos que escreveram para Andrés Segovia, destacam-se Manuel Ponce e Heitor Villa-Lobos.
O mexicano Manuel Ponce (1882-1948) encontrou Segovia pela primeira vez em 1923, quando de um concerto deste na cidade do México. Ponce escreveu sobre aquele concerto:
Andrés Segovia é um inteligente e valioso colaborador dos jovens músicos espanhóis que escrevem para o violão. Sua cultura musical permite-lhe traduzir com fidelidade em seu instrumento o pensamento do compositor e, desta maneira, enriquecer dia a dia o não muito grande repertório de música para o violão (…)
Da amizade nascida entre Ponce e Segovia resultou uma grande produção musical destinada ao violão. A primeira obra foi uma sonata Mexicana (1923), que utiliza temas folclóricos. Seguiram-se a esta o Théme Varié et Finale (1926) e a Sonata III (1927).
Nestas duas obras, Ponce demonstra sua refinada linguagem musical, utilizando sutilezas rítmicas e harmônicas de extrema beleza. Assim como Tedesco, ponce escreveu obras em homenagem a compositores do passado. São duas sonatas, sendo a primeira uma sonata Romântica (Hommage a Franz Schubert, 1928) e a Sonata Clássica (Hommage a Fernando Sor, 1930). Nestas duas obras, Ponce presta sua homenagem a duas figuras importantes na história do violão. Retornando a uma linguagem musical moderna, Ponce escreve as Variation sur “Folias de España” et Fugue (1929), considerada por muitos como uma das maiores obras escritas para o violão no século XX. Aqui, Ponce explora todas as possibilidades técnicas e musicais do instrumento. Ainda dedicados para Segovia são os 24 Preludios (1929), dos quais Segovia selecionou e editou 12, e a Sonatina Meridional (1932).
A coroação de toda esta obra de altíssima qualidade está no Concierto del Sur (1941), que é um dos mais bem sucedidos do gênero. Esta obra teve sua estréia em 1941, em Montevidéu, quando de uma excursão de Ponce pela América do Sul.
[…] Da colaboração entre Segovia e Villa-Lobos resultou a série de Doze Estudos (1929). Obra de importância fundamental no repertório atual do instrumento, é original nos seus achados técnicos, melódicos e harmônicos. Dedicados a Segovia, os estudos abrem um novo caminho na escrita idiomática para o instrumento.
Destacam-se várias obras de Villa-Lobos para violão. Por exemplo, a Suite Populaire Bresiliene (1908-12), composta de cinco movimentos, Mazurka-Choro, Schottish-Choro, Valsa-Choro, Gavota-Choro e Chorinho, constitui um excelente retrato da música popular brasileira do início do século. Mas a melhor homenagem aos seus companheiros de choro, é o primeiro da monumental série dos Choros: os Choros nº 1 (1921), dedicado a Ernesto Nazareth.
Os Prelúdios datam de 1940. Originalmente em número de seis (o sexto está perdido), os cinco restantes tornaram-se das obras mais populares e executadas na literatura violonística do nosso tempo. São obras que exploram de forma inteligente as possibilidades tímbricas, expressivas e técnicas do violão. Os prelúdios tiveram sua estréia realizada em 1943, pelo violonista uruguaio Abel Carlevaro, em Montividéu.
A última obra composta para violão por Villa-Lobos é o Concerto pour Guitare et Orchestre (1952). Esta obra foi fruto da insistência de Segovia junto ao compositor brasileiro. Concebido como uma fantasia concertante, foi-lhe acrescentada uma cadência para violão, torndando-se o concerto para violão e orquestra. O concerto é a síntese da escrita violonística de Villa-Lobos, apresentando recursos já utilizados nos estudos e prelúdios. A estréia desta obra deu-se em 1956, em Houston, nos EUA, tendo Segovia como solista e o autor como regente.”