Se pararmos para olhar o universo à distância, veremos que em seus primeiros momentos ele era bem simples, era um espaço cheio de matéria, algo sem caracteres ou características. Era o que na mitologia Hindu se chama de “Turiya” – palavra que descreve algo como “sem atributos”. Leva tempo para ocorrer uma transformação em reinos mais criativos. A pré-condição para a criatividade é o desequilíbrio, o que os matemáticos atualmente chamam de Caos. Através da vida do universo, à medida em que caíam as temperaturas, surgiam estruturas compostas cada vez mais complexas. A partir do estado de fecundidade criativa, manifestava-se mais criatividade. O universo é uma máquina de fazer arte, um motor para a produção de formas cada vez mais novas de se estar conectado, e da justaposição cada vez mais exótica de elementos díspares.
Cada artista é uma antena para o Outro Transcendental. Enquanto seguirmos com nossa própria história para dentro disso e criarmos confluências únicas de nossa singularidade e sua singularidade, nós criamos coletivamente uma flecha a partir da história, do tempo, talvez até a partir da matéria, a qual vai redimir a ideia de que os humanos são bons. Esta é a promessa da arte, e sua realização nunca esteve tão perto do momento presente.
Improvisação - So What (Miles Davis)
Esta seção, "Improvisação", é destinada aos músicos que desejam conseguir criar música espontaneamente, empregando essencialmente a linguagem do jazz. Para que isso seja possível, serão analisados tópicos como harmonia, forma, escalas, ritmo e estratégias tradicionais de improviso.
Nesses posts de estudo e improviso, aprenderemos a forma, harmonia e escalas de cada tema com um intuito de aprendizagem progressiva abordando aspectos importantes da linguagem jazzística em cada um.
Trabalharemos hoje com um tema introdutório para nosso estudo da improvisação: So What, primeira faixa do disco Kind Of Blue de 1959. Nosso enfoque nesse tema é dominar a forma e internalizar nosso o ritmo harmônico e reconhecer modulações.
Forma
A primeira coisa que deve ser pensada para a aprendizagem de um novo standard é a forma em que está disposto o tema. É importante internalizar os padrões das mudanças harmônicas para a improvisação, tanto no jazz quanto em qualquer outra linguagem.
No caso de So What, temos um tema de 32 compassos, dividido em A A B A. Isso quer dizer que cada segmento harmônico terá oito compassos quaternários, o segundo é igual ao primeiro, o terceiro introduz uma nova ideia e é seguido por um quarto que reapresenta o primeiro.
Com essas informações em mente, evidencio como se estrutura a música na gravação original:
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Introdução livre
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Tema – apresentado no baixo
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solos individuais, 32 compassos – Miles, Coltrane, Cannonball, Bill Evans
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Tema – novamente apresentado no baixo e desaparecendo vagarosamente
Harmonia
Começamos por esse standard em função de sua simplicidade de mudanças no tempo harmônico. Dessa forma estudamos para internalizar o momento de mudança de acordes e, por consequência, percebermos o momento para adotarmos uma nova escala para nosso improviso. Tanto A quanto B tem apenas um único acorde que os define, A revolverá em torno de Dm7 e B em Ebm7.
Começamos com esses acordes com o mesmo shape:
Escalas
A importante peculiaridade de So What é que Miles Davis com esse tema apresenta ao mundo jazzístico a improvisação modal. Isso quer dizer que, ao invés de se improvisar pensando em uma tonalidade e progressões harmônicas que revolvem em torno dela, pensaremos as escalas em função ao acorde que está soando, independente do contexto maior do que precede este ou para onde está indo.
Usaremos nos dois acordes o modo Dórico, que é como uma escala menor com a sexta maior. Uma boa forma de internalizar a construção desse modo é pensando em uma escala de Dó sendo tocada a partir da nota Ré. É como se, em um piano, tocássemos só notas brancas (sem acidentes) com nosso centro revolvendo em torno de Ré. Por conveniência, é justamente nesse Ré que temos o A de So What, um acorde menor com sétima, Dm7.
Temos à nossa disposição para o improviso nesse acorde as notas de sua escala formadora:
D – fundamental
E – segunda maior
F – terça menor
G – quarta justa
A – quinta justa
B – sexta maior
C – sétima menor
O segundo acorde está uma segunda menor acima, Ebm7, e seguimos o mesmo pensamento para improvisar no B onde ele aparece. O modo dórico para Eb:
Eb – fundamental
F – segunda maior
Gb -terça menor
Ab – quarta justa
Bb – quinta justa
Cb – sexta maior
Db – sétima menor
Distribuídos pelo braço da guitarra, temos para as formas/shapes para a sessão A Ré Dórico e Ré# Dórico na sessão B.
Agora estamos preparados para brincar encima desse tema. Coloque o backing track e inicie seus estudos! Caso ainda seja difícil fazê-lo, para saber melhor como aplicar as instruções desse post, leia a série de teoria musical.