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Lama Jigme Lhawang

Jigme Lhawang (འཇིགས་མེད་ལྷ་དབང་) em tibetano quer dizer Destemida Divindade Detentora de Poder. Lama (བླ་མ་), por sua vez, quer dizer Professor, Guru ou Mestre. Aos nossos ouvidos ocidentais, menos treinados na tradição de treinamento da mente dos Himalaias, estes adjetivos esplendorosos podem soar um tanto excessivos e afetados, quase que como uma adoração, verdadeiro culto à personalidade. Eu mesmo sou um exemplo clássico da mente cínica que por muito tempo se acreditava dotada de um espírito crítico mordaz e cheio de um wit todo charmoso - nada nem ninguém resistia às rapinagens da minha perspectiva ácida, que fazia o caos de qualquer tentativa de espremer um pingo de sentido deste mundo frio e desalentador, de instituições falidas e falsos ídolos. Não faz muito tempo desde que minha reação ao ouvir alguém sendo chamado de “guru” e pior “guru divino e todo poderoso” seria de sorriso de canto de boca, com um respeito condescendente, mas opressivo - aquele do bom mocismo que é cego a alteridade e, no fundo, se orgulha de ser tão afetadamente inclusivo e, claro, superior a todo resto. De um niilismo rasteiro a um humanismo adolescente, que engendra uma boa parcela da tolerância midiática que vemos por aí - e também por aqui, no facebook mesmo, onde a mera aparência de virtude virou commodity da rede social. Como disse um amigo querido certa vez: “é por vermos que não conseguimos ver”. Porém, é claro que as coisas mudaram e hoje quando o Lama senta em seu trono, me prostro em sua reverência. Há uns tempos isso me soaria impossível e até mesmo grosseiro. É a impermanência falando, mas também outras coisas. Quais?

Receio que poucos de nós teremos a oportunidade de conviver, nesta vida, com pessoas que ostentam genuínas qualidades que, por falta de um adjetivo melhor, vou chamar espirituais. O que com certeza é mais pungente, porém, não é a raridade da presença destas pessoas, pois, por mais raras que sejam, elas definitivamente existem. O que acontece é que em nosso delírio generalizado de uma falsa liberdade, que resume liberdade a atos de consumo (material, cultural e ideológico) e não reconhece a liberdade de viver uma vida plena, nós temos, reiteradamente, ignorado estas qualidades tanto em nós como nos outros. Mesmo sem querer, as julgamos desimportantes e colocamos em segundo plano o desenvolvimento de virtudes e o trabalho inesgotavelmente extenuante que isso implica, gerando espaço para outras “prioridades”. E, em nosso cinismo perante a falência institucional generalizada do ocidente, ao ouvirmos expressões como “compaixão” e “bom coração”, franzimos o cenho e vamos em busca de quem tem algo mais elaborado e pirotécnico a dizer. Ora, não somos culpados - estamos exaustos, saturados apenas. Mas depois de abrirmos a geladeira a noite e simplesmente não encontrarmos o que estamos procurando vez após vez após vez, talvez seja a hora de reconhecer que não dá para continuar assim. Uma hora, se tivermos o devido mérito, seremos cobrados de tomar uma postura em relação a outro tipo de coisa - certamente não cobrados pela nossa educação, pela nossa cultura, pelos nossos colegas de trabalho - mas pelo próprio tempo, que começa a colocar rugas na nossa cara, nos tornar menos ágeis e mais cansados, que tira de nós amigos e pessoas amadas, que faz ver todas as nossas economias descerem pelo ralo e todos os nossos esforços terem um destino pouco lisonjeiro e, por fim, nos enterra a sete palmos debaixo da terra, nos deixando perplexos e confusos, nos perguntando “onde foi que eu perdi as rédeas?” E, por mais melodramático e apelativo que isso possa soar, não deixa de ser uma paráfrase da realidade que, com sorte, enfrentaremos em nossos últimos dias - com mais ou menos pompa a morte está aí esperando para dar o bote.

E, se não temos a desenvoltura para falar da morte sem eufemismos, podemos apenas endereçar as perdas cotidianas que estão se acumulando em nossa trajetória – o encerramento da etapa da educação formal, cuja promessa era o desembocar em uma vida confortável e segura, e que se revela em nós na frente da tela de um computador, soterrados com a burocracia mesquinha do dia a dia e temerosos de perder o pouco que já conquistamos; o término ou as brigas constantes em relacionamentos amorosos, sejam de um fim de semana, de anos inteiros ou mesmo décadas, tão cheios de promessas e expectativas, por conta de desentendimentos obscuros que, por incrível que pareça, fomos nós que criamos; a alienação que gradualmente vamos sentindo perante nossos familiares, amigos e parceiros, cujos valores e referências vão perdendo mais e mais o sentido, fazendo com que essas pessoas, que já foram nossos portos seguros, nos acometam como tão ou mais perdidas que nós mesmos. E, nesse painel cinzento que desenhei, ousaria eu sugerir que um mestre budista é o chumaço de luz que vai iluminar e subjugar todos os obscurecimentos?

A primeira vez que eu vi um Lama, no caso o próprio Lama Jigme Lhawang, eu já estava mais ou menos convencido de que talvez eu não tivesse a onisciência que eu pensava ter quando analisava um fenômeno ou ideia qualquer – que eu não era tão isento quanto imaginava ser e que as minhas críticas muitas das vezes refletiam inclinações particulares a certas orientações que apenas “soavam” melhores. Eu estava cheio de certezas sobre métodos, perspectivas e versões de mundo, tanto que eu defendia como que eu criticava, das quais eu havia no máximo ouvido falar ou lido uns livros a respeito – meu apoio eram bases que pareciam muito sólidas, mas que não haviam sofrido nenhum chacoalhão particularmente intenso. De certa forma o que pode soar como mera entrega percebo genuinamente como um refinamento do ceticismo ao qual eu sempre deleguei um valor especial: não só cético em relação aos fenômenos e experiências, mas em relação as minhas próprias inclinações perante aos fenômenos e experiências – cético perante a minha própria versão dos fatos e perante a intuição velada, mas onipresente em mim e na maior parte das pessoas, que a minha opinião é a sempre a melhor e a mais correta.

Dizer que o Lama foi o chacoalhão que abalou essas estruturas seria ao mesmo tempo exagerar e subestimar o impacto de sua presença. Um exagero porque a minha memória não falha quando recordo que, ao ouvi-lo pela primeira vez, suas palavras não trouxeram nenhuma epifania especial e duradoura; que, essencialmente, ele choveu no molhado do bom coração, reiterando temas e citações que não seriam completamente estranhas a um livreto de autoajuda qualquer. Entretanto, pela ocasião de haverem-se reunido condições para uma frestinha de receptividade que seja, percebi que algo ali me inquietava; uma sensação estranha de que ali havia alguma coisa que não se encaixava perfeitamente em meu modelo de mundo - algo que poderia mesmo ser diferente.

O anzol que se enganchou nessa frestinha foi a gargalhada. Por singela que pareça, a gargalhada ressoou como um trovão que te desperta do sono profundo a noite. Mesmo acreditando, dentro do meu espírito cínico, que não havia nada necessariamente novo ali (e como eu estava enganado), existia algo na apresentação, na formalidade, na elaboração de todo aquele teatro que era profundamente autoconsciente e dissimulado. Parecia mesmo que estavam brincando comigo ou ainda, brincando para mim, e a gargalhada nada mais era que o gozo de me ver caindo naquela peça que estavam pregando - era, aliás, o humor gentil e relaxado de perceber como há várias peças sendo pregadas em toda parte e uma cambada de tontos caindo nelas, a torto e a direito, o tempo inteiro - desengonçados e cômicos, como palhaços em um picadeiro mesmo. Talvez eu tenha sido movido pela arrogância de não aceitar facilmente ser motivo de piada daquele jeito. Eu precisava entender o que havia ali, afinal de contas, de tão hilário.

E é evidente que a perspectiva obtusa tem grande dificuldade em reconhecer o novo como novo. Em nosso mundo de referências fáceis, onde teclar qualquer coisa em um computador já nos fornece uma lista interminável de factoides supostamente legítimos, é bem difícil perceber a possibilidade de que há coisas que realmente não conhecemos e nem estamos em condições de conhecer ou entender. É difícil acreditar que aquilo que se mostra diante dos nossos olhos não é aquilo que tão claramente parece ser - que a nossa tendência habitual é encaixar o que é novo nas fórmulas prontas que já pisamos e repisamos, reduzindo, assim, a alteridade ao que nos é familiar, para bem ou para mal. Que essencialmente criticamos e adoramos fantasmas e reflexos dos nossos próprios hábitos reiterados; que combatemos e somos vencidos por projeções bem convincentes do espaço que contém o refúgio pelo qual buscamos a vida inteira.

E é esse espaço que ria de mim de forma tão prazenteira quando eu ouvia uma vez mais sobre bondade amorosa e compaixão - as mesmas palavras, só que dessa vez de uma fonte consideravelmente mais profunda, tanto que pouco evidente a olhares apressados como o meu. Uma risada não daquela qualidade que contamina e oprime, mas que convida a rir junto; aquela risada do avô para com o neto que foge da própria sombra, ou do amigo divertido que torna leve a tensão juvenil entre você e um outro parceiro da turma. Enfim, uma risada que não condena, mas que acolhe. Se ao menos aquele dito professor me concedesse um pouco da sua hilaridade talvez já fosse suficiente. Entretanto, a bondade e generosidade dos professores supera em muito as esmolas que almejamos para nós mesmos, mesmo quando, em nosso horizonte limitado, acreditamos estar jogando alto.

Eu entendo bem que essa conversa toda corre o risco de soar como nada mais que inconveniente idolatria, então vale a pena apontar algumas questões etimológicas do tal Lama Jigme Lhawang para desfazer de vez quaisquer equívocos eventuais. A palavra “Lhawang” (ལྷ་དབང་) em tibetano combina outras duas: “wang” (དབང་) que significa, essencialmente, aquele dotado de grande poder, de potencial de ação, especialmente no contexto vajrayana, e “lha” (ལྷ), que significa divindade ou deidade. Aqui, porém, “lha” é usada em seu sentido de deidade - mesmo havendo uma única palavra em tibetano para ambos os significados a diferença entre elas é considerável, como a diferença entre o ouro e o latão. “Deidade” seria a corporificação de um aspecto da nossa própria mente - trata-se de uma representação não somente simbólica, mas corpórea e, em sentido relativo, real, ainda que translúcida, imaterial, de uma qualidade que não existe fora de nosso próprio campo de experiência. Não se trata, então, de algo externo com o qual nos relacionamos como um sujeito separado (o que se enquadraria aqui no termo “divindade”), mas de um reflexo de uma qualidade intrínseca a nossa própria mente - em um nível mais profundo, um reflexo de nossa natureza primordial. Ao trabalharmos, então, com uma “deidade”, não estamos invocando, chamando ou rezando a nenhum espírito ou entidade em particular – nós nos servimos de certas inclinações comuns de nossa própria mente (de pensar em termos de objetos cognitivos externos e separados, dotados de uma substancialidade essencial), estruturadas na forma de práticas, para revelar alguns aspectos de nossa cognição, relação com o mundo, enfim, de nossa mente em si mesma e, por conseguinte, da tal “realidade”.

Jigme (འཇིགས་མེད་), por sua vez, quer dizer “destituído de temor” ou simplesmente “destemido” – é o prenome dado à todos aqueles que tem nome de refúgio na linhagem Drukpa do budismo dos Himalaias. Mas a que temor esta expressão se refere? Mais acima falei de nossa tendência a negligenciar qualidades humanas em detrimento de outras prioridades supostamente mais importantes – por que fazemos esta escolha, consciente ou inconscientemente? Por que escolhemos nos submeter, vez após vez após vez, às estruturas que acabam nos prendendo e sufocando? O que estamos protegendo com unhas e dentes – a que estamos, enfim, nos agarrando com tanta força? Talvez acima de todas as imagens e elaborações, de monges carecas sentados em lótus, o conceito mais essencialmente budista de todos seja o de shunyata – vazies – mais particularmente a vazies de um “eu” sólido e substancial, de qualquer essencialidade independente a esta experiência subjetiva que classificamos como “eu”. O que não exclui, é claro, a aparência vívida de um “eu” e de tantas outras coisas mais.

Tememos profundamente por este “eu”. Lutamos todos os dias para construir uma versão melhor deste “eu” – um “eu” mais inteligente, sofisticado, interessante, bonito, eminente, respeitado; um “eu” que viaje o mundo inteiro e tenha várias histórias de “eu” para contar; um “eu” que medita e pratica o budismo com toda a seriedade e devoção, que segue um mestre e se vê como discípulo; um “eu” realizado, casado, próspero, feliz, com filhos e netos – um “eu” que, enfim, nasce, cresce, envelhece e morre. Porém, há um sentido subjacente de desconfiança para com este “eu”. Ele está aqui, presente neste momento, mas de alguma forma ficar em sua presença sem nenhum intermediário é extremamente desafiador – o simples fato de sentar-se parado por alguns instantes já é suficiente para desafiar a sua existência e deixa-lo tremendo nas bases. Sentimos a necessidade urgente de validar o “eu” – precisamos diploma-lo, dar a ele uma carreira, precisamos casa-lo, dar filhos a ele; precisamos faze-lo se sentir grande e poderoso, o colocando acima dos outros, criando, artificialmente, condições para ele comparar-se e sobrepujar outros “eus” distintos e separados. Ora, mesmo oferecendo tudo a ele, parece que ele não se satisfaz. De alguma forma ele não se sente seguro em apenas ser o que é: para que ele não se sinta ameaçado, precisamos fazer alguma coisa, alguma coisa que o proteja. Se não fizermos nada o que sobra?

A última palavra é Lama (བླ་མ་), para qual não é preciso servir-se de nenhuma etimologia especial. Lama significa, simplesmente, mestre.

“O que é o mestre?” Uma vez outro amigo muito querido teve a sensibilidade de fazer essa pergunta diretamente ao Lama em um retiro. Certamente não farei jus a resposta dele aqui, nem vou me arriscar a reproduzi-la, mas me lembro vivamente das seguintes palavras, expressas em um sorriso amoroso, que iniciaram a sua fala:

“Algumas pessoas aqui hoje acham que há um Lama na frente delas”.

Outro conceito tipicamente budista e igualmente mal compreendido (inclusive por mim) é o de interdependência do qual, em grande medida, deriva o de vazies. Em nossa operação padrão, temos a tendência de dar realidade aos fenômenos externos como se eles existissem de maneira completamente separada e isenta - somos espectadores puros e isolados, dotados de condições perfeitas de apreciar a realidade que vive lá fora. Nesta operação padrão, podemos acreditar de fato que aquele que senta no trono é um ser de carne e osso, dotado de qualidades extraordinárias e aura divina, espiritualmente superior e distante, quase inacessível, ou, como eu mesmo faço, podemos duvidar dessa história toda e simplesmente desmerecer aquele teatro e o sujeito de vestido, julgando os seus seguidores como uma turma de iludidos - podemos preservar este “eu” que quer estar certo sozinho e é esperto demais para ver qualidades nos outros; que não se curva a ninguém além de si mesmo, seu próprio discernimento e suas próprias conclusões; que precisa ser constantemente mimado, afinal, ele é mesmo um bom garoto. É claro que o “caminho do meio” não seria de tomar extremos como estes. Há um espaço além do eternalismo e do niilismo, além da fé cega e do ceticismo cínico, que é terreno fértil de onde surge o verdadeiro guru. No encontro, na interdependência, entre a sabedoria expressa externamente na figura de um ser humano de carne e osso que concede ensinamentos e o próprio revelar dessa sabedoria internamente – no espaço de consciência que, em plena lucidez, reconhece a inseparabilidade do que concede e do que recebe bênçãos – é aí que está o mestre. Um lama externo que simplesmente reflete o lama interno.

Voltando a pergunta capciosa que fiz anteriormente – seria o mestre budista a grande fonte de luz que ilumina e desfaz todos os obscurecimentos? Aí depende. Regra geral, a resposta é não – simplesmente porque é bem provável que, em nossas atuais circunstâncias, ainda não temos as condições de estabelecer esta interdependência profunda com o professor, que é um dos principais e mais eficazes métodos do budismo dos Himalaias para realizarmos a liberação. O processo de relação com o guru, em nível tanto externo, interno como secreto, é algo que se constrói gradualmente a partir de uma análise minuciosa e que pode durar um longo tempo – como diz Padmasambhava “não examinar o guru é como beber veneno; não examinar o discípulo é como pular de um precipício”.

Isso não impede, porém, que nós aspiremos: aspiraremos encontrar o mestre genuíno, que reflete nosso potencial interno vasto, límpido e inexaurível, sem começo nem fim – um mestre que pode se apresentar de diversas formas, na medida de sua compaixão e de nossas limitações: na forma de uma mãe ou de um pai, que nos nutriram e apoiaram incondicionalmente, mesmo quando éramos incapazes de nos limpar por nós mesmos; de um avô que nos aquece com sua presença amorosa, histórias, gentileza e exemplo de vida; de um irmão que não nos julga, mas nos protege e nos ampara não importando a cagada que tivermos feito; de um bom amigo, que nos entende genuinamente, do jeito que somos, sem que precisemos nos justificar para nada; de um padre que nos escuta com o coração ou de um pastor que nos ensina com o coração; de um animal de estimação, cujo amor é incondicional, livre de rótulos e julgamentos; de um colega inconveniente no trabalho, que nos dá a oportunidade de nos reconciliarmos com nossa paciência; de um pedinte, que nos dá a oportunidade de nos reconciliarmos com nossa generosidade; de um bandido, empresário ou político corrupto, que nos dão a oportunidade de nos reconciliarmos com nossa compaixão; ou, quem sabe, de um Lama budista, que usa saias, bebe coca-cola, come quindim e ri uma gargalhada profunda, genuína e cortante.

[1:27h] Áudios e vídeos de encontros com o Lama

[11 min] Entrevista e biografia de Lama Jigme Lhawang

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