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NARRATIVAS SOBRE A ORIGEM DO UNIVERSO

por Christhian Beschizza

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Neste texto, pretendemos introduzir o os conceitos de cosmogonia e cosmologia,mencionando as narrativas sobre o surgimento do cosmos desde a mitologia até a filosofia grega e a religião medieval. Desta forma, procuramos incitar a reflexão filosófica do leitor sobre a visão de mundo que herdou de sua cultura, contrapondo à premissas de outras civilizações, proporcionando oportunidade de revisão e questionamento de ideologias infundadas e depuração de crenças dissonantes com a realidade.

 

O ser humano distingue-se dos demais animais essencialmente por sua consciência perceptual e organização linguística racional, e pelas inquietudes que o domínio de tais juízos proporcionam. De onde viemos? O grande mistério da natureza da existência, da vida e do universo, é um grande enigma para a mente humana, desde tempos imemoriais até os dias de hoje. A mente humana procura sintetizar uma justificativa sobre a transformação do caos primordial da inexistência em um cosmos ordenado onde a vida consciente é capaz de se desenvolver. Em meio à incertezas existenciais, o ser busca respostas para questões fundamentais, como o sentido da vida, a escolha do destino, a origem e o fim da vida, das coisas, da felicidade e do amor.

 

Cosmogonia

 

Cada cultura naturalmente formulou uma narrativa mitológica que ambiciona justificar a existência e as questões fundamentais, sendo propagada e reajustada por transmissão oral dos antepassados às novas gerações. Após o surgimento da escrita e da literatura, a religião assimilou e compilou narrativas cosmogônicas em livros, considerados revelações sagradas pelos povos doutrinados. A atitude filosófica desconstrói e investiga a cosmologia desde então, a partir de diversas correntes de pensamento que vamos averiguar no decorrer do texto. Vigorando atualmente como senso comum, partindo de descobertas na física do século XX, a abordagem científica propõe e sustenta a possibilidade do surgimento do universo a partir da grande explosão primordial há 12 bilhões de anos atrás, o big bang, uma cosmologia fundamentada na exatidão de cálculos matemáticos e observações objetivas sobre princípios da natureza e da astronomia.

 

A cosmogonia é o conjunto de especulações baseadas no mundo sensível sobre a gênese do cosmos presentes no mito – isso quando não são a própria essência do mito. Explica a complexidade da vida, como as divisões, guerras, ciúmes, paixões, disputas sobre a justiça, e trata de tudo que diz respeito a vida humana e o universo. É caracterizada por narrativas mitológicas que discursam sobre uma espécie de genealogia dos deuses, ou teogonia, em busca dos pai e mãe do mundo, em termos de estórias sobre divindades antropomórficas ou seres superiores e forças misteriosas. Mito é uma alegoria narrativa simbólica, uma explicação de caráter fantástico e étnico, cujos personagens que figuram no discurso são entidades sobrenaturais sagradas, como deuses, avatares e semi-deuses. Distingue-se da lenda por adereçar a origem do mundo, fenômenos naturais ou crenças religiosas de determinada comunidade. A lenda, por sua vez, são relatos folclóricos flexíveis que discorrem sobre acontecimentos históricos com hibridismo fictício, misterioso e sobrenatural, sem pretensão de explicar os fundamentos da existência.

 

Criacionismo é o mito que define o mundo como criação de um Deus ou Demiurgo. É uma premissa monoteísta adotada pelo judaísmo, cristianismo e islamismo, os fundamentos religiosos da civilização ocidental - que herdaram concepções pré-históricas híbridas de mitologia e filosofia advindas do Oriente Médio e da Grécia. No contexto bíblico, a cosmogonia é definida no livro Gênesis, que propõe alegoricamente a criação do mundo em seis dias por Deus, que descansa no sétimo dia. Pressupõe-se, por premissa de fé, a existência do criador, não necessariamente adereçando por quê e a partir de quê é feita a criação. A forma deste criador é psicologicamente baseada no anseio do ser humano pela plenitude de poder (onipotência), compreender (onisciência) e dissolver as restrições geo-orgânicas (onipresença), e politicamente inspirada no imperador, personalidade dos patriarcas da alta hierarquia monárquica: anseio por servidão, personalidade punitiva, dominação bélica e legislação autoritária. Essa cosmogonia concebe o mundo como um artefato, artífice produzido como um ser humano cria um vaso de cerâmica, um mito antropomórfico de interpretação do surgimento do mundo que reverbera no senso comum ocidental até a atualidade. Em seguida, abordamos a diferença entre cosmogonia e cosmologia.

 

Cosmologia

 

A cosmologia, um modelo de explicação filosófico que gradualmente se emancipa da descrição mitológica, pretende compreender com reflexão metafísica a própria constituição do ser, o princípio existencial. Seu objeto de estudo é o mundo exterior, a essência da matéria e da vida. Na antiguidade grega, entre os séculos 9 e 6 a.C, a partir do questionamento das narrativas mitológicas e da tendência racional, os filósofos desenvolveram discursos que não reverenciavam cegamente os astros e a interferência de forças divinas no ser humano. A cosmogonia religiosa e mitológica dissolveram-se lentamente pela atitude filosófica.

A primeira expressão documentada da arte do pensamento que buscou independência cosmológica, sem fabulação, é o período grego naturalista. Aristóteles explica no livro Metafísica que o filósofo precursor da busca pela natureza do universo (physis) é Tales de Mileto (624-546 a.C.), que propõe que a natureza é material, onde nada se gera e nem se destrói – um princípio original indestrutível e eterno, que persiste inalterado sob as mais variadas aparências – Nietzche subentende nessa proposta a latente concepção do monismo: tudo é um. Tales propõe que este é a água, Anaxímenes conjectura que é o ar, mas podemos perceber que no naturalismo, ainda há o princípio cosmogônico de explicar a origem do universo partindo de uma força que se impõe ao caos. Outra expressão grega digna de nota é a descrição dos pitagóricos, onde a essência (arché) é o número e as relações matemáticas. Propõe que o número é que dá forma e determina o indeterminado. É uma cosmologia que propõe o universo como organização da harmonia, conforme a consistência da música.

 

O período clássico grego inspirou profundamente as narrativas cosmológicas ocidentais, reverberando no pensamento cristão medieval. Dois principais pensadores foram responsáveis por estabelecerem os alicerces em que se ergueu a filosofia cristã. Platão (427 a.C. - 347 a.C.) afirma em seu diálogo Timeu, onde expõe sua cosmologia, que “a alma recebe a existência do Demiurgo (artesão em grego). Mas o Demiurgo não é Criador, que tirasse do nada tudo quanto existe. Pois, já antes existia a matéria, e a sua obra só consiste em tirar o mundo visível que não se encontrava em estado de repouso, mas no de um movimento desmedido e desordenado — da desordem para a ordem, convencido que este segundo estado era, em todo ponto de vista, melhor que o primeiro”. Platão contrapõe claramente o transitório mundo visível (que inclui o espaço matemático) ao mundo das Idéias, afirma que no príncipio era a alma, e aponta a necessidade de um princípio para a existência do mundo.

 

Seu discípulo Aristóteles (384–322 a.C.) não concorda com as crenças platônicas e ampara sua metodologia exclusivamente na observação e na razão, conforme sumariza sua máxima: “nada está na inteligência sem antes ter estado nos sentidos”. Postula através da argumentação linguística a necessidade de uma substância pura, um motor imóvel, o pensamento do pensamento, a causa original. Sua visão astronômica geocêntrica também teve grande influência até a intervenção de Copérnico. Santo Agostinho (354-430) inspira-se em Platão, sendo responsável pelo neoplatonismo que vigorou até o século XIII, “proclamando que as coisas se originaram em Deus, que a partir do nada as criou. (...) Entre os seres da criação existe uma hierarquia, em que o homem ocupa o segundo lugar, depois dos anjos.” (BARSA, 1997) São Tomás de Aquino (1225-1274) embasa-se em Aristóteles em sua escolástica. Através do método lógico da evidência racional e sensível, elaborou cinco argumentos que provariam a existência de Deus através dos efeitos por ele produzidos, e não através da Ideia, como pressupõe Platão. As cinco vias de raciocínio pelas quais propõe a existência de Deus são: O "primeiro motor imóvel", A "causa primeira", O "ser necessário", O "ser perfeitíssimo" e A "inteligência ordenadora".

 

Nossa breve revisão histórica pretendeu sumarizar o percurso da cosmogonia mitologicamente inspirada e a cosmologia fundamentada em atitude filosófica, eventualmente engendrando-se na narrativa religiosa da civilização cristã, concluindo a leitura a seguir como uma breve ressalva sobre a premissa mitológica criacionista inerente da estrutura linguístico-sintática do pensamento greco-latino.

 

Em contrapartida à um modelo cosmogônico criacionista, o filósofo britânico Alan Watts entrepõe uma noção cosmológica oriental, hindu ou chinesa, em que o indivíduo não se pergunta como foi criado – como se fosse um artífice, tal como uma escultura - mas questiona como foi que cresceu – análogo a uma semente que vira uma árvore. Criação e crescimento são processos inteiramente diferentes, o que se cria é feito de fora para dentro, enquanto que crescimento é um desenvolvimento de dentro para fora, que se expande, que floresce, que acontece constantemente e em um processo único. Análogo ao processo biológico de células em um ventre, progressivamente complicando-se para tornar-se um organismo autônomo. Esse é o processo de crescimento, fundamentado dentro das dinâmicas de observação da natureza, e é bem diferente de um processo mitológico hipotético de criação. Tendo como ponto de partida essa simples diferença conceitual para a explicação de onde viemos, filosofias engendradas no taoismo e o zen budismo divergem significativamente quanto à necessidade de recorrer à fantasias discursivas para justificar a vida e construir valores éticos. Sugerimos, finalmente, um maior aprofundamento do leitor interessado em elucidar as premissas existenciais que dão suporte à crenças não examinadas, principalmente nos estudos de cosmologia, teologia e psicologia comparativa entre ocidente e oriente na obra de Watts.

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